Guiné-Bissau – 40 anos de impunidade

Pedro Rosa Mendes (coord.)
LGDH e ACEP, Bissau, 2013

Nelvina Barreto

Licenciada pela Faculdade de Direito de Lisboa, é consultora de organizações internacionais. Na Guiné-Bissau, coordenou projectos de desenvolvimento na área da educação, desenvolvimento comunitário e boa governação. Em Angola, foi responsável de programas do BAD. Foi ainda Secretária Executiva da Plataforma das ONGs da Guiné-Bissau e é coordenadora da MIGUILAN (Movimento de Mulheres da Guiné-Bissau).

O estudo sobre Quarenta Anos de Impunidade na Guiné-Bissau, coordenado por Pedro Rosa Mendes e editado pela Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH) e a Associação para a Cooperação Entre os Povos (ACEP), começa com uma definição da impunidade como “ausência, de direito ou de facto, de responsabilidade penal dos autores de violações, bem como da sua responsabilidade civil, administrativa ou disciplinar, na medida em que estes escapam a todas as tentativas de investigação tendentes a possibilitar a sua acusação, a sua detenção, o seu julgamento e, no caso de serem considerados culpados, a sua condenação a penas apropriadas, incluindo a de reparar o dano sofrido pelas vítimas”.

“…Ninguém é responsável, ninguém é culpado, ninguém é vítima…. A impunidade na Guiné-Bissau é associada, expressa ou indirectamente, à própria história do país e a cronologia de violência política e de crimes ao mais alto nível do Estado e que ficaram ate hoje por explicar ou julgar”– página 43.

Este é um dos parágrafos mais marcantes do relatório que analisa a impunidade vigente na Guiné-Bissau, pondo em relevo a inoperância das instituições do Estado responsáveis por assegurar a realização da justiça de forma equitativa para todos os cidadãos, garante dos direitos a vida e integridade física dos cidadãos.

Os anos posteriores à independência, em particular a década de 1980-1990 foram cruciais para determinar o rumo que assumiu o Estado guineense, com o seu cortejo de violências, de crimes económicos e de instabilidade política, somando “casos” (caso 17 de Outubro, caso 17 de Marco, caso 12 de Abril, etc..) sem que fossem apontados e tratados os factos, de forma clara e transparente, através de mecanismos judiciais, civil ou militar. Fica demonstrado no relatório a correlação directa existente entre a impunidade reinante e a fragilização das instituições do Estado, com ênfase para o sector da Justiça.

Importa salientar igualmente que depreende-se da leitura do relatório que a percepção da sociedade guineense sobre a impunidade sofreu uma evolução que considero negativa. Actos que outrora eram considerados como criminosos, hoje, à excepção dos crimes de sangue, merecem um certo beneplácito da sociedade. Refira-se o fenómeno da corrupção quase institucionalizada, que vem reforçar a chamada “lacuna da impunidade”. A grande criminalidade, onde se inclui o narcotráfico e os crimes económicos, não sofre de uma forte sanção moral da sociedade guineense, abrindo caminho para a desresponsabilização dos autores desses crimes e para a sua reincidência. A delinquência política é igualmente consequência dessa lacuna da impunidade. Lê-se no parágrafo referente à Corrupção, um Ataque a Direitos Fundamentais, na página 28 do estudo – “ O combate à grande criminalidade não pode ser dissociado de uma investigação profunda e da responsabilização efectiva dos que espoliaram a Nação anteriormente. São esses os mesmos indivíduos e grupos que continuam a usar o produto do saque anterior e da corrupção para financiar as suas actividades, lavando na economia e nos negócios os frutos de uma riqueza ilegalmente obtida”.

Este cenário é agravado com o recurso ao mecanismo da amnistia, um instrumento importante para servir objectivos de reconciliação, de paz jurídica ou de estabilidade política, mas que na Guiné-Bissau vem-se confirmando como “uma porta escancarada para a impunidade”, lê-se na página 29 do relatório. O “direito ao esquecimento” defendido por alguma jurisprudência, nomeadamente em casos de sociedades em transição, saídas de conflitos longos e dolorosos, baseado nos princípios da Verdade e da Justiça, em que se concede o perdão com o objectivo de se encontrar o justo equilíbrio entre a generosidade e a necessidade de manter a paz pública, é muitas vezes confundido com a amnésia, numa tentativa de apagar da memória das vítimas e seus descendentes todo o sofrimento que lhes foi infligido. Na observação que se faz aos mecanismos de justiça transitória, enquanto instrumentos para alcançar objectivos mais abrangentes de prevenção de novos conflitos, de paz e de reconciliação; o papel dos cidadãos na definição de políticas de combate à impunidade, embora referido de forma superficial, é de extrema importância.

O disfuncionamento do sector judicial, com um corpo de magistrados altamente vulnerável a ameaças e subornos, contribuiu para o desmoronamento do edifício do Estado de Direito. A falta de independência dos tribunais, face ao poder político e militar, é evidente na impotência das instâncias judiciais para esclarecer as sucessivas eliminações físicas de personalidades políticas, ao mais alto nível da hierarquia do Estado. A tentação de utilização da justiça privada é enorme, sendo que o recurso à justiça tradicional, em substituição dos tribunais, é uma realidade no país, exemplificado no estudo através das entrevistas efectuadas a alguns cidadãos.

O relatório menciona, na análise das forças de defesa e segurança, a sua génese e evolução como condicionantes da sua actuação. A 14 de novembro de 1980 deu-se início ao crescente protagonismo assumido pelas Forças Armadas da Guiné-Bissau, até aos dias de hoje. O fracasso das sucessivas tentativas de reformas do sector de defesa e segurança, a resistência à modernização das suas estruturas e corpos, aliada à crise de comando, às promoções arbitrárias e envolvimento ao mais alto nível das suas hierarquias em tráficos de todo o género, particularmente o narcotráfico (de combatente da liberdade da pátria a narcotraficante); demonstra a erosão do património simbólico que representavam as nossas “gloriosas Forças Armadas”. São igualmente abordadas as questões de violência e consequente lote de impunidades ligadas às questões de género e da infância (casamento forçado e precoce, mutilação genital feminina, violência doméstica, crianças talibés), com recurso a testemunhos comoventes e autênticos de dirigentes associativos, responsáveis políticos, professores, activistas e vítimas desses graves abusos aos direitos humanos.

Este estudo sobre a impunidade, não podendo ser exaustivo, incide nos aspectos mais profundos e determinantes do fracasso do Estado da Guiné-Bissau.
Alguns ângulos ficaram contudo por analisar como:

​- O papel e a responsabilidade da sociedade guineense e dos seus corpos organizados na promoção de valores morais e éticos que condenem toda a forma de crimes e que sirvam de antena de alerta na prevenção de derivas aos princípios e regras que regem um verdadeiro Estado de Direito Democrático;

– O papel e a responsabilidade da comunicação social na Guiné-Bissau na investigação, na informação da sociedade e na denúncia pública, dando voz as vítimas de crimes e de abusos de força, contribuindo assim para reduzir a impunidade reinante;

– O papel e a responsabilidade da comunidade internacional, particularmente do Gabinete de Consolidação da Paz das Nações Unidas – a UNIOGBIS – no apoio às instituições do Estado para restabelecimento das suas funções soberanas.

O estudo carece de maior divulgação junto a sociedade guineense, dos órgãos de soberania e dos parceiros internacionais, de forma a dar a conhecer, de maneira sistematizada e desprendida de emoções, a radiografia de um país que sofre de uma doença genética – a violência – fruto da forma como foi gerado.