Ler as desigualdades como formas de múltiplas injustiças

Rogério Roque Amaro

Professor Associado do Departamento de Economia Política do ISCTE - IUL / Instituto Universitário de Lisboa, é doutorado em Análise e Planeamento do Desenvolvimento pela Université des Sciences Sociales II, Grenoble (França). Tem desenvolvido e apoiado vários projectos de intervenção comunitária e Economia Solidária em diferentes zonas do país e do mundo.

Elísio Macamo

Professor de Sociologia e Estudos Africanos na Universidade de Basileia, Suíça. Nasceu e cresceu em Moçambique, formou-se em Moçambique, na Inglaterra e na Alemanha. Já foi bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia como investigador pós-doutorado no Centro de Estudos Africanos do ISCTE. Interessa-se actualmente por questões metodológicas, mas continua a fazer pesquisas sobre questões do Desenvolvimento.

Falar de desigualdades significa falar de injustiça, pelo menos numa das suas expressões, que é a impossibilidade de determinadas pessoas terem acesso a determinados recursos. Falamos não só de recursos económicos, mas também de recursos políticos, culturais, ambientais, etc. De que forma é que este tema das desigualdades, lido como injustiça, tem consequências nefastas numa multiplicidade de áreas?

ROGÉRIO ROQUE AMARO (R.R.A.) — Sou economista de formação. Sou um economista pouco convencional, pouco aberto às ortodoxias que dominam. Tenho lidado com as questões do desenvolvimento, onde obviamente me confronto com as questões das desigualdades. E agora também com a área da economia solidária que visa também combater as desigualdades. Há uma questão muito curiosa sobre a qual gostava de ouvir a sua opinião enquanto sociólogo. Segundo alguns economistas famosos, até prémios Nobel, a desigualdade é uma pré-condição para estimular o crescimento económico, para estimular a iniciativa e o empreendedorismo. Há uma teoria que diz que é preciso estarmos desiguais para estimular a iniciativa, o empreendedorismo e o crescimento económico. Concorda com essa afirmação?

ELÍSIO MACAMO (E.M.) — É uma boa pergunta. Não acho que esteja de acordo com essa ideia. Acho que essa ideia só faria sentido dentro de uma proposta teórica que tivesse como pressuposto as desigualdades. Eu não creio que seja, do ponto de vista ético e normativo, mas também do ponto de vista científico, uma proposta que possa ser defendida até às últimas consequências. O meu problema é mais de natureza epistemológica, de teoria do conhecimento. É que essa proposta tinha que partir do princípio de que as coisas que acontecem na vida têm um certo elemento de determinismo. E que esse determinismo, controlados todos os factores, iria conduzir infalivelmente a esses resultados que o esquema parece esperar. O grande problema é que as coisas da vida não são assim. As desigualdades podem criar conflitos e podem levar inclusivamente ao colapso de um sistema social. A primeira reacção a essa proposta é que ela faz pouco sentido a não ser que haja um elemento de determinismo no pensamento que está por detrás dessa ideia que iria garantir, do ponto de vista epistemológico, esses resultados. O último ponto, para que se possa pronunciar também, é que eu acho que a única justificação para esse tipo de proposta seria a ideia de que o que se tem em mente quando se fala de desenvolvimento é um certo crescimento económico. Mas, para mim, crescimento económico não é necessariamente desenvolvimento. Portanto, a minha pergunta para si, Rogério, é se as pessoas que fazem essa afirmação acham que crescimento económico é desenvolvimento.

R.R.A. — Tem razão. Os que defendem a tese de que no processo crescimento económico as desigualdades podem ajudar a que ele ocorra estão a cometer, a meu ver, alguns erros. Desde logo, o erro epistemológico que referiu da visão determinista. Pior que isso até, há aqui uma perspectiva quase darwinista, mas já volto a pegar nesse assunto. Uma das falhas desta tese relaciona-se com a crença de que a desigualdade provoca crescimento económico, o que não é de todo garantido, do ponto de vista histórico, retrospectivo. No entanto, a questão fundamental é a que nos está a dizer. Devemo-nos ficar por uma avaliação dos efeitos das desigualdades apenas do ponto de vista economicista, do ponto de vista económico? Mesmo que haja crescimento económico, é compatível com outras questões, como a justiça social, a justiça ambiental, a justiça cultural e a justiça democrática? A história mostra-nos que normalmente as desigualdades têm acompanhado o agravamento de todos os processos que referi. Injustiça social, predação ambiental, destruição das culturas na sua diversidade, destruição de territórios, de localizações viáveis para as pessoas e aprisionamento da democracia. Os efeitos vão muito para além da componente económica e não se podem medir em termos de crescimento económico. Quanto muito, dependendo de como definimos desenvolvimento. Ainda que o conceito de desenvolvimento esteja a ser alvo de muitas críticas, pois acaba por não se conseguir desprender de uma visão ocidental, imperialista e economicista. Escrevi recentemente um artigo sobre esta questão, onde, apesar de tudo, tento recuperar a palavra desenvolvimento. Muitos de nós, que lutámos contra o desenvolvimento economicista, que lutámos contra o imperialismo, fizemo-lo em nome de desenvolvimentos alternativos, tanto no norte como no sul. Isto foi possível por vários empenhamentos radicais, que criaram esperança e que abriram novos rumos na área do desenvolvimento comunitário, na área de uma ecologia integral, na área de um desenvolvimento mais humano, o que me faz crer que a palavra desenvolvimento não foi completamente abastardada. Foi bastante, mas não completamente. Isto não invalida que procuremos noutras epistemologias do sul outras expressões e outros conceitos que nos enriqueçam o diálogo com lutas que fizemos pelo desenvolvimento e que faço permanentemente pelo desenvolvimento em muitos países. Gosto de estar em contacto e em diálogo com conceitos como o conceito de sumak kawsay do povo quechua, que é traduzido por buen vivir. Mais recentemente, através do economista senegalês Felwine Sarr, que vem falando do conceito de noflay, que é uma palavra wolof, para dizer bem-estar, alternativa ao desenvolvimento. Podíamos ir mais próximo da sua origem e ir aos povos xhosa e zulu e buscar a própria palavra ubuntu e o seu significado de realizar-me em ti, ir contigo, de continuidade contigo. E isso não permite a desigualdade como injustiça, como processo sistemático, como resultado. Obviamente, deste ponto de vista, estamos de acordo. A desigualdade não pode ser o nosso critério. Mesmo que as desigualdades levassem ao crescimento económico, o que não é verdade.

E.M. — Eu tenho uma pergunta, antes de comentar o que disse. Quando estava a falar desses conceitos mais endógenos, eu não sei se vou até às últimas consequências com esse tipo de pensamento. Até que ponto é que o buen vivir, ou ubuntu, ou o que se diz em wolof são manifestações alternativas de crescimento económico ou de desenvolvimento e não apenas uma racionalização da situação em que estas comunidades se encontram hoje? Eu fiz, em tempos, um exercício em relação ao ubuntu e ao buen vivir e cheguei à conclusão preliminar de que não havia muitas diferenças entre os princípios na base dessa visão do mundo e do que conhecemos do pensamento político e social da Grécia da antiguidade. Isto levou-me a pensar que se tratasse não necessariamente de uma visão alternativa, mas de uma expressão que me parece muito mais próxima do contexto económico e social de uma determinada comunidade. E fiquei com receio de que a insistência na idealização dessas outras concepções de desenvolvimento e de crescimento económico pudesse estar a condenar essas comunidades a uma vida sem perspectivas. Queria fazer essa provocação antes de responder à questão que me colocou.

R.R.A. — Devo dizer que tenho sobre isto uma opinião relativamente aberta a interpretações diversas. Penso que, em primeiro lugar, é importante a atitude, que é epistemológica, no sentido de nos colocar perante a questão de como construir e dialogar com o conhecimento, que é ouvir o que outros povos, mentalidades e civilizações têm a dizer sobre o seu bem-estar. É importante ouvir, estar à escuta. Mas também é verdade que muitas vezes não são estes povos que nos dizem o que estão a viver. Eles são interpretados por pensadores, intelectuais, que obviamente têm os seus esquemas de interpretação, partem de pré-conceitos, de pressupostos e que depois elaboram a sua sistematização muito longe daquilo que é a origem dessas vivências. Há esse risco E aí estar a ser não uma expressão directa, própria, espontânea dessas comunidades e civilizações, mas uma interpretação enviesada. Contudo, eu acho importante ler, estudar e ouvir o que eles têm a propor. Por outro lado, há por vezes a convicção que essas propostas são efectivamente alternativas e que arrasam completamente as propostas que existem vindas das tentativas de desenvolvimento alternativo. Há autores, como o Boaventura Sousa Santos, que defendem que o desenvolvimento alternativo é uma ilusão, o que temos de ter são conceitos alternativos ao desenvolvimento. Eu não concordo com isto. Acho que muitos dos conceitos de desenvolvimento alternativo são verdadeiramente alternativos. São verdadeiramente experiências de propor uma vivência diferente. E eu digo isto por vivências próprias, nomeadamente em África e na América Latina, mas também em Portugal, nas zonas periféricas, nos bairros sociais e nas zonais rurais do país. E portanto acho que é extremamente ingrato e injusto arrasar completamente os conceitos de desenvolvimento alternativo, sem procurar dialogar com eles. Simultaneamente, tenho orientado teses de mestrado e doutoramento que têm mostrado que muitas vezes há mais pontos de contacto entre o conceito de buen vivir e algumas das propostas que não existiam ou que são apresentadas a partir de outras perspetivas. É mais interessante a interacção e o diálogo do que a recusa total de um lado pelo outro. Eu diria, em síntese, que é importante ouvir o que essas civilizações nos têm a dizer. Seria bom ouvi-las em directo e não apenas intermediadas por intérpretes que muitas vezes enviesam o que eles têm a dizer. Isto deveria ser feito sempre em diálogo com outras propostas vindas de outros mundos e civilização, inclusivé do passado, como disse da Grécia antiga. Por fim, há mais ponto de contacto e de convergência do que se quer fazer crer. Às vezes quer-se dizer que é tão alternativo que se apaga o que é comum para sublinhar o que é diferente. E acho que isso às vezes é artificial e exagerado. Gostava de voltar à questão que lhe coloquei sobre as desigualdades. Parece que num certo momento do pós-guerra, as desigualdades pareceram amenizar-se, pelo menos numa certa parte do mundo. Nos últimos 30 anos, as desigualdades claramente acentuaram-se. Hoje, as desigualdades dentro dos países e entre os países são muito mais acentuadas do que eram no final dos anos 70. E há alguns indicadores que são muito claros nisso. A Oxfam tem produzido vários relatórios sobre esta questão. A ONU também tem mostrado isso nos seus relatórios. A vitória dos liberais e a queda do socialismo e do intervencionismo keynesiano acabaram por acentuar as desigualdades, trazendo novas formas de pobreza e exclusão social. Gostava de o ouvir comentar isto, inclusive no diz respeito a Moçambique, mas por agora em termos gerais.

E.M. — Eu também não concordo com essa proposta darwinista. No entanto, a dificuldade que tenho nessa minha discordância é uma dificuldade pragmática. Até que ponto é que não está contida nessa proposta darwinista apenas a aceitação de um facto? Nós temos um sistema económico à escala global que funciona como funciona. As desigualdades a que assistimos são um efeito estrutural. Podemos remeter, com muita facilidade, ao funcionamento do sistema. Eu não concordo que existam pessoas que podem ser dispensadas da vida, mas gostaria de aceitar a ideia de que existe um sistema que produz esse tipo de pessoas e que provavelmente não existe uma maneira eficaz de corrigir esses defeitos. Podemos apenas ter soluções paliativas. Podia sugerir que o ideal seria mudar completamente o sistema, mas não sei se seria realista esse tipo de exigência. Como vê, tenho dificuldades com a visão darwinista. Mas quando procuro perceber um indivíduo são na sua mente, chego a esta questão estrutural e começo a ver a questão como sendo uma questão pragmática. E é essa abordagem pragmática que me permitiria fazer uma distinção entre a criação de oportunidades como o paliativo possível desse sistema e não olhar para as desigualdades nos países da periferia, como países africanos e da América Latina, como o maior problema que as pessoas têm. São um problema, mas não o problema central. Na sociologia do desenvolvimento tendemos em olhar para as desigualdades como a causa dos problemas, quando o que essas desigualdades fazem é descrever a situação que os países enfrentam. Olho para as desigualdades em Moçambique não como a causa para a instabilidade política, por exemplo, mas como uma descrição do problema do desenvolvimento, que nos remete para uma questão estrutural de base que é o sistema económico. O que tem acontecido é que, com o agravamento das dificuldades funcionais do próprio sistema, a situação dos países que estruturalmente estão numa relação difícil com o sistema, vai tender a piorar. A desigualdade manifesta-se mais a nível individual como um problema sociológico nesses países. Mesmo em Portugal, apesar de estar em certo ponto na periferia, penso que o problema da desigualdade se apresenta de uma forma completamente diferente de como se apresenta em países africanos. Tendo isto em consideração, não há nenhum tipo de intervenção, na minha opinião, que se possa fazer no Senegal ou em Moçambique para melhorar a situação das pessoas, porque a nossa situação de desigualdade está intimamente relacionada com a nossa posição dentro do sistema económico. Algo que me parece diferente da Alemanha, dos Estados Unidos ou mesmo de Portugal.

R.R.A. — Gostava de comentar algumas coisas. Desde logo concordo que as desigualdades mais do que uma causa são uma manifestação e um efeito. Por outro lado, quando disse que as desigualdades não são o principal problema de desenvolvimento de um país como Moçambique, gostava de perceber o que quer dizer, porque não sei se concordo. De qualquer das formas, a questão das desigualdades é hoje transversal porque podemos vê-la não só entre países, mas dentro dos países. É uma ilusão dizer que há países ricos e pobres, apesar de ser estatisticamente verdade. Há, sim, pessoas que têm acesso a determinados recursos e outras que não têm, mesmo no caso de países ditos mais ricos como é o caso dos Estados Unidos. Gostava, por um lado, que me esclarecesse essa questão e, por outro, de pôr na agenda da nossa conversa os seguintes tópicos: de que forma é que as desigualdades, que normalmente tendemos a ver na sua componente económico-social (em termos de rendimento e em termos de efeitos sociais, pobreza, exclusão social), se repercutem noutras áreas, como por exemplo a relação com outros seres vivos, com outras culturas e com a democracia? Simultaneamente, de que forma é que a crise pandémica que estamos a viver contribuiu para o agravamento das desigualdades, produz novas desigualdades? Por fim, a grande questão que gostava de colocar é de que forma podemos combater as desigualdades, que estratégias, soluções podemos adoptar?

E.M. — Eu, na verdade, não tenho a certeza do que estou a dizer. Vou explicar. É uma reacção instintiva que eu sempre tive à forma como os nossos problemas são vistos por nós. Isto é, gosto sempre de abordar os problemas de Moçambique e de África a partir de uma perspectiva de desconfiança crítica. Não aceitar a descrição que os outros fazem dos nossos problemas. É o efeito dessa desconfiança que faz com que eu comece por dizer que não tenho a impressão que as desigualdades sejam o principal problema. O que eu quero dizer com isto é que não está completamente nas mãos do governo moçambicano, da sociedade civil moçambicana, resolver os problemas económicos do país. Justamente porque todos eles são reféns de um sistema económico sobre o qual não têm controlo. O melhor que podem fazer não é necessariamente resolver os problemas graves e sérios que as pessoas têm de acesso às oportunidades e aos recursos e de uma distribuição mais equitativa da riqueza. Se concentramos muita atenção na resolução do problema das desigualdades, não vamos fazer aquilo que me parece absolutamente necessário, que é tornar o país mais robusto em relação ao sistema que cria todos estes problemas. Quando eu digo que a desigualdade não é o nosso principal problema isso não quer dizer que não seja um problema, que as pessoas não sofram com isso e que não tenha consequências na harmonia e integração na nossa sociedade. É como se estivéssemos perdidos à procura de um objecto apenas nos lugares onde há luz e não vamos procurar onde realmente perdemos esse objecto. Sempre que a indústria do desenvolvimento fala dos problemas africanos e fala em desigualdade… Eu não sei se existe desigualdade social em Moçambique. Penso que existe uma desigualdade estrutural. A desigualdade é social nas suas manifestações, mas penso que temos que resolver o problema estrutural, que infelizmente não está nas nossas mãos.

R.R.A. — Falar de desigualdades significa falar de injustiça, pelo menos numa das suas expressões, que é a impossibilidade de determinadas pessoas terem acesso a determinados recursos. Falamos não só de recursos económicos, mas também de recursos políticos, culturais, ambientais, etc. Este tema transborda, de facto, a questão social e económica e vai tocar noutras áreas. De que forma é que este tema das desigualdades, lido como injustiça, tem consequências nefastas, na área das relações com o ambiente, do respeito pela cultura, da democracia efectiva e das práticas democráticas, na área do desenvolvimento regional e do acesso dos territórios ao seu bem-estar e no acesso ao conhecimento? Isto são apenas alguns exemplos de áreas em que a injustiça associada à ideia de desigualdades acaba por ter implicações negativas. Concorda?

E.M. — Concordo e gosto da forma como colocou a questão. Temos capacidade de pensar em maneiras de afinar o sistema político para que se aborde a questão da justiça. Uma delas é o que falámos antes, e eu sei que tem reticências em relação a isso, sobre a questão de oportunidades. As pessoas precisam da sensação de que estão a fazer alguma coisa pelas suas próprias vidas. Um dos problemas na forma como fazemos desenvolvimento e fazemos política é pensar que podemos definir uma agenda baseada nos objectivos e que esses objectivos são sempre a solução de algum problema material. E eu penso que o principal desafio que enfrentamos situa-se a um outro nível, que é um nível de determinação de criação de condições dentro das quais se possa fazer alguma coisa. Nós temos a questão da pandemia agora. É ver a forma como muitos governos africanos abordaram a questão. Costumo dizer que é suicídio por medo da morte. Para reagir à pandemia, fecharam a economia e não deram às pessoas a oportunidade de terem uma vida para poderem proteger essa vida. Penso que o mesmo aconteceu em Portugal. Não quero dizer que a COVID-19 não existe. Digo, sim, que os países africanos se encontram numa situação em que a questão não é achatar a curva, mas sim dar uma vida às pessoas para que tenham interesse em proteger essa vida. E essa vida não se dá sem risco.​

R.R.A. — Essa é uma excelente questão e vou voltar a ela daqui a pouco. Só queria voltar ao princípio da sua intervenção para sublinhar que, na minha opinião, a questão das desigualdades é efetivamente uma manifestação e efeito, mas ela tem a ver com a questão da injustiça e é nessa perspetiva que deve ser abordada. É um problema de injustiça não permitir que todas as pessoas possam ter acesso às oportunidades e escolhas para lutar pelo seu bem-estar. Sendo um problema de justiça, não é apenas um problema de injustiça social, mas que tem tradução nos seus efeitos ambientais. Muitas vezes, as desigualdades provocam estratégias desesperadas de utilização dos recursos por parte das populações mais pobres, que têm, por exemplo, de produzir carvão para poder sobreviver, destruindo a pouca vegetação existente. As desigualdades acabam por se traduzir em injustiças ambientais e em desigualdades em relação a outros seres vivos que ficam limitados na sua possibilidade de bem-estar e de sobrevivência. As desigualdades também se traduzem em desigualdade na valorização das culturas. Populações mais desprovidas, mais injustiçadas ficam, muitas vezes, sem possibilidade de defender a sua cultura, em nome da cultura que se sobrepõe, que tem poder, que é a cultura uniformizadora, destruindo aquilo que é a riqueza da diversidade cultural. Desigualdade que também se traduz em territórios que são deixados de lado, sem a possibilidade de se afirmarem face ao seu subdesenvolvimento, quer sejam territórios periféricos urbanos, quer sejam territórios periféricos rurais. E, ainda, as desigualdades têm tradução no acesso à democracia, a ter voz activa, a poder ter uma palavra a dizer relativamente ao futuro. No fundo, as desigualdades têm quase todas na sua base uma visão economicista que fez da economia o centro do mundo. E isso naturalmente acaba por capturar a democracia e pô-la ao serviço dos seus interesses, fazendo com que as desigualdades também se traduzam em desigualdades democráticas, de acesso à democracia. O que significa que este tema que estamos aqui a falar acaba por se traduzir num problema de dignidade humana e de sustentabilidade.

E.M. — Concordo com esta ideia da injustiça e da dignidade. Não diria que a desigualdade nos leva a isso, mas cria sensibilidade para discutir os problemas de construção de uma sociedade do ponto de vista normativo e que não podemos fazer isto sem recurso a certos princípios que são importantes, como o princípio da justiça social, de dignidade humana. Nesse sentido a desigualdade tem um quê de instrutivo. Eu iria contudo insistir na questão de que, como problema social, a desigualdade se coloca de forma diferente, de acordo com a sociedade. Não é um relativismo. É importante que toda a sociedade tenha a oportunidade de articular o problema da desigualdade. Se vai articular o problema da desigualdade em termos de justiça social, de dignidade, de solidariedade, de sustentabilidade, é algo que deve ficar ao critério de cada sociedade. É algo que tem uma certa historicidade. Não sei muito bem qual é a sensibilidade de Portugal neste tema, mas gostaria de saber, sobretudo tendo como pano de fundo as discussões que têm havido no país em relação aos portugueses de origem estrangeira. Gostaria de perceber até que ponto essa discussão sobre a migração, sobre a integração de pessoas diferentes também reflecte uma sensibilidade histórica portuguesa em relação à questão da desigualdade.​

R.R.A. — Pois, essa é uma questão interessante. E, nos últimos tempos, não digo que esteja a ser colocada de uma forma explícita, mas está presente numa outra discussão que tem sido muito debatida, a questão de se há racismo em Portugal. Esta questão relaciona-se não só com os imigrantes que vêm sobretudo de África, mas também de outras origens. Isso tem-se traduzido nesta discussão, havendo duas posições opostas, nomeadamente as que consideram que em Portugal não há racismo. Normalmente são as pessoas mais à direita que se colocam nesta posição. Uma outra posição assume a existência de racismo, por vezes de forma mais aberta e outras mais subtil e uma das traduções disso é por exemplo a desigualdade de oportunidades. Por que é que os trabalhos de limpeza são feitos maioritariamente por pessoas oriundas de África? Porque é na fase de desconfinamento o número de infectados aumentou muito entre pessoas imigrantes trabalhadoras? Isso tem a ver com o tipo de postos de trabalho que têm. São eles que fazem a limpeza dos supermercados e, portanto, nunca pararam. São eles que têm que andar em autocarros sobrelotados, não têm carros próprios. São eles que têm que ir trabalhar às cinco da manhã e apanhar os autocarros sobrelotados. São eles que estão a fazer as obras nas casas, na rua, nos trabalhos públicos, na construção civil. Portanto, a questão das desigualdades acaba por ser atravessada por pertenças étnicas e origens de imigração que produzem formas de desigualdade também a esse nível. Temos essa noção clara em Portugal.. O vírus não distingue pessoas. Mas as condições que facilitam apanhar a infecção não são as mesmas para toda a gente. Nem toda a gente pode estar fechada em casa, sem correr riscos. Nem toda a gente tem acesso a água potável permanentemente. Há uma situação de resultados desiguais perante situações desiguais face a uma situação como esta que é o novo coronavírus. Este é um caso em que as desigualdades se agravaram. Há pessoas que gostam de glorificar o teletrabalho. Primeiro, o teletrabalho só é possível para quem possa fazer o trabalho à distância. Não é possível fazer a limpeza de uma casa à distância, não se pode fazer a reparação de um prédio ou de uma estrada em teletrabalho. O teletrabalho tem outra desvantagem, mesmo para quem o pode fazer, podendo invadir o dia-a-dia da pessoa, que deixa de ter horários. A COVID-19 é simultaneamente um agravamento destas situações e das desigualdades entre os efeitos que provocou, mas é também uma oportunidade para mudarmos de vida e para mudarmos uma série de coisas no sistema. Sendo ou não um problema central, a desigualdade é um quadro que decorre de injustiças, que exprime a falta de solidariedade e o poder da competição, que se traduz em indignidades e que impede a sustentabilidade. Foi a frase que decorreu da nossa conversa e que as suas frases e os seus comentários suscitaram em mim. Já percebi que a desigualdade não é para si um problema central, mas pensa que deve ou não ser combatida e como?

E.M. — Penso que a desigualdade deve ser combatida, mas a grave dificuldade que temos é por onde pegar. Noutras sociedades, que não em África, as sociedades têm muito maior controlo sobre os processos económicos e portanto a questão coloca-se a outro nível. Para mim o problema central é como traduzir a desigualdade num programa que consigamos atacar. Gostei das propostas que fez, introduzindo questões como a justiça e injustiça, a dignidade e a sustentabilidade. São coisas que criam espaços de acção para as pessoas, sobretudo no nosso contexto. Não sei até que ponto, e isto é uma provocação, é que o conceito de racismo nos ajudaria a resolver o problema que acabou de narrar acerca de Portugal. Não creio que ao nível da tematização do racismo seja possível abordar o que está na base da vulnerabilização de certas populações, que, por razões que toda a gente conhece, são compostas maioritariamente por pessoas de uma certa origem. Mas isso é uma manifestação de desequilíbrio estrutural, própria do sistema económico, e talvez aí Portugal precise de um outro tipo de linguagem. É isso que acho interessante do debate que tenho acompanhado em Portugal. Pareceme existir uma certa incapacidade de problematizar esta situação, que permita uma acção eficaz contra os problemas de base. Não creio que a problematização do racismo ajude nesse sentido. Acho interessante como uma sociedade como a portuguesa não está a conseguir encontrar a linguagem capaz de permitir definir o problema que precisa de ser atacado. Então há esta polarização entre quem é antirracista e quem é nacionalista. Acho isso interessante.​

R.R.A. — Concordo parcialmente consigo. Acho que uma discussão descontextualizada e mal colocada do racismo não ajuda muito à discussão de problemas como o das desigualdades. Contudo, acho que é um tema que precisa de ser discutido a sério e com profundidade. Acompanho de perto situações onde essa questão se vive intensamente. Não só nos meus contactos com comunidades imigrantes, nomeadamente de origem africana. Mesmo que seja de forma subtil, os efeitos prolongados do racismo, que vêm do colonialismo, fazem-se sentir ainda e têm expressões extraordinariamente negativas. A questão é que não estamos a saber discutir o problema, porque ele está lá nas entrelinhas e no dia-a-dia. Um problema ainda mais complicado de abordar são os preconceitos e o racismo contra a comunidade cigana. É uma comunidade que viveu 500 anos fora das cidades e que nos últimos 40 anos veio para as cidades. E não estamos a conseguir conviver de forma pacífica. Há aí racismo explícito. No caso dos africanos também é uma história de muitos anos. E têm expressões e resultados diversos nas imagens que se projectam, nos preconceitos que se constroem, nos lugares que se atribuem na sociedade. E isso posso dizer que vivo de perto nas relações que tenho com essas comunidades. E, portanto, discutir de forma superficial o racismo é inútil. Mas se o discutirmos em profundidade e o situarmos nas causas históricas, prolongados efeitos e expressões, isso é muito preciso na sociedade portuguesa. Em relação à crise pandémica e às diferentes respostas internacionais, é evidente que os países estão a ser afectados de formas muito diversas. No entanto, é curioso que os Estados Unidos, um país que é uma potência, esteja a ser um dos países afectados em termos de infectados e de mortes. Por outro lado, a China, que também é uma potência emergente, acabou por ser a quem fomos todos pedir ajuda, porque precisávamos de máscaras e de luvas. A luta pela vacina mostra que as potências estão em competição para ver quem domina o quê. É evidente que tudo isto afectou imenso as economias. Levou a quedas na produção, no consumo, ao aumento da fome e do desemprego. Esta crise irá agravar as desigualdades, mas também há efeitos contraditórios como este da principal grande potência ser dos países mais afectados, em termos de infectados, de mortes e desemprego. Mas também é provável que, se não se fizer nada, sejam os países em mais dificuldades, com menos capacidade de resposta a sofrer mais com os impactos económicos, sociais e políticos da crise. A União Europeia, que já deu mostras de capacidade de solidariedade, agora está a ter dificuldade em gerar respostas de entreajuda neste processo. Embora haja alguns sinais positivos, são talvez hesitantes e insuficientes. E depois não nos esqueçamos que os abutres das finanças estarão aí quando os países tiverem necessidade de se endividar, a cobrar os seus juros e as suas dívidas. Se não houver uma capacidade organizada e solidária, a nível das Nações Unidas ou União Europeia, os desequilíbrios entre países vão-se agravar.

E.M. — De modo geral, concordo com essa leitura, mas quero referir três coisas. Nós, africanos, receamos que como estamos numa posição frágil e vulnerável no sistema económico mundial, se ele tossir apanhemos um resfriamento. É mais por essa via, dos problemas do sistema económico, que vamos sofrer as consequências. Em segundo lugar, o que me preocupa mais na questão da pandemia é a oportunidade que os países perderam de fazer as coisas melhor. Pela primeira vez, tivemos um problema mundial grave ao qual nós, países africanos, poderíamos ter respondido melhor sem necessitarmos de recursos financeiros, pois era uma situação de lidar com o conhecimento científico. Tem-se falado muito dos países africanos serem os menos afectados pela pandemia. Havia tanta incerteza em relação ao conhecimento que se tem sobre esta pandemia. Essa incerteza, na minha opinião, era uma oportunidade para utilizar a inteligência, para saber como gerir a pandemia. Infelizmente perdemos essa oportunidade a favor do pânico geral. Os problemas que estamos a viver por causa da pandemia são problemas que provêm da nossa reacção à pandemia e não da pandemia em si. Isto leva-me ao terceiro aspecto, de volta ao que estava a dizer sobre a desigualdade. É muito importante ganhar o hábito de traduzir problemas internacionais em problemas locais. Nem todo o problema internacional é nosso problema. Nem toda a forma como o problema é visto internacionalmente tem que ser a forma como devemos ver o problema localmente. E mais uma vez perdemos uma grande oportunidade de fazer uso da inteligência para definir o problema da COVID-19 de uma maneira que nos permitisse agir. Não o fizemos e as consequências disso são desastrosas. Nós vamos sofrer muito em Moçambique, em Angola, e não consigo culpar os governos, porque estavam numa situação difícil. Não gostaria de estar na pele de nenhum governante africano nestas condições. Mas enquanto académico posso dizer que perdemos uma grande oportunidade de utilizar o conhecimento científico para informar a política.

R.R.A. — Devo dizer que me revejo muito no que disse. Voltando à questão das desigualdades e das injustiças e de como as combater. Sem querer ter a pretensão de ter a resposta gostava de deixar três contributos. Primeiro, é preciso ter um quadro de referência claro para que essa luta seja travada com sucesso. Segundo, é preciso criar condições de partida que sejam justas e igualitárias. Terceiro, é preciso criar instrumentos e medidas de correção ao longo dos processos e nos efeitos. Em relação ao primeiro ponto, e sem querer ser exaustivo, menciono três referências para o quadro estratégico. Primeiro, tratar este problema como um problema de desenvolvimento. Ou seja, como um problema de procura de bem-estar e de promoção da felicidade das pessoas. Segundo, abordá-lo de uma forma multidimensional, perceber que as injustiças estão todas relacionadas entre si e tratá-las tendo em conta isso. Terceiro, assumir a solidariedade como um valor de referência das nossas sociedades, o que implica uma certa preocupação colectiva e não a lógica meramente individualista e competitiva. O segundo ponto é o de lutar pela igualdade de oportunidades à partida e, portanto, agir para que essa igualdade de oportunidades sejam o mais próximo possível do ideal. Através, por exemplo, de educação pública que permita que toda a gente tenha acesso a um nível mínimo de conhecimento e pensamento crítico, daí a importância da escolaridade mínima. Por outro lado, outra condição, que ficou muito clara agora, é uma saúde pública que garanta o acesso de todos ao bem-estar físico. O terceiro elemento como condição de partida é ter uma democracia que funcione, não só do ponto de vista representativo, mas também participativo. Devem ser criados estímulos à democracia participativa, de raiz associativa. Finalmente, o terceiro pilar desta estratégia de luta contra as injustiças e as desigualdades é ter instrumentos de correcção ao longo do processo. Os anteriores são no princípio e este é ao longo do processo. Isso passa naturalmente por corrigir injustiças e desigualdades na distribuição de rendimentos. Obviamente que isto se faz com o Estado social, ou seja, através da tributação, da redistribuição e de transferências. É muito importante que se contenha o poder económico e a sua invasão do poder político. É também importante dar a voz ao maior número de pessoas nos processos de desenvolvimento. Isto acontece no desenvolvimento local, no desenvolvimento participativo.

E.M. — No fundo, concordando com o que o Rogério disse, tudo para mim se reduz a um conceito que o Rogério também introduziu na nossa discussão: o conceito de dignidade humana. É um conceito que praticamente todas as sociedades reconhecem. Faz também parte, do ponto de vista filosófico, do imperativo categórico de Kant, quando ele fala da necessidade de tratar as pessoas não como um meio, mas como um fim em si. Sou a favor de qualquer sistema político que tenha na sua base o respeito por este. Isso vai abrir espaço para todo o tipo de criatividade. E eu diria que muitos dos aspectos mencionados pelo Rogério fazem parte da agenda que a protecção e promoção da dignidade humana torna possível. Por exemplo, a questão da igualdade de oportunidades à partida. A questão da escolaridade, a questão da saúde, são questões muito importantes. E gostaria de destacar a questão da dignidade por considerar essencial dar espaço a cada sociedade para discernir o que precisa de fazer para estar à altura desse princípio. Tenho algumas reticências, não reticências de princípio, não porque não concorde com os elementos do que foi aqui explanado, mas para permitir que sejam as sociedades a dar substância a esta agenda. É o que faz com as nossas sociedades sejam diferentes, embora semelhantes. É o que gostaria que fosse possível para os países africanos, inclusive para o meu país, Moçambique. Gostaria que pudéssemos comunicar com o resto do mundo, ao nível da partilha de certos princípios básicos, sem contudo perdermos o direito de definir como vamos operacionalizar esses princípios.