Como podemos perspectivar um mundo pós-COVID-19?

Pedro Conceição

É director do Gabinete do Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD. Licenciado em Economia pela UTLisboa e em Física pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa, Pedro Conceição é doutorado em Políticas Públicas pela Universidade do Texas, Austin. O seu trabalho de investigação foi publicado em revistas como a Oxford University Press, a African Development Review ou a Ecological Economics.

“Sugerir que a resposta à pandemia representa uma oportunidade sem precedentes para reconstruir melhor tornou-se um mantra, mas saber quais as necessidades a considerar para garantir que tal se verifica afigura-se menos claro.”

A pandemia provocada pela COVID-19 está a desencadear uma crise no desenvolvimento humano. Em algumas das dimensões do desenvolvimento humano, as condições actuais encontram apenas correspondência nos níveis de privação que vislumbrámos pela última vez em meados da década de 80. Mais, esta crise está a afectar profundamente todos os elementos constitutivos do desenvolvimento humano: rendimento (com a maior contracção na actividade económica desde a Grande Depressão), saúde (causando directamente centenas de milhares de mortes e contribuindo indirectamente para mais 6000 mortes, diárias, de crianças cujas causas seriam perfeitamente evitáveis) e educação (com taxas de escolarização – contando com a impossibilidade de aceder à Internet – na educação primária a atingirem níveis correspondentes aos verificados em meados de 1980). Tudo isto sem contar com outros efeitos perceptíveis de forma menos directa, como a violência doméstica, com impactos ainda por documentar.

Simulações baseadas no Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado – com a dimensão da educação modificada para reflectir os efeitos do encerramento de escolas e outras medidas de mitigação – e que incorporam projecções actuais do Produto Nacional Bruto (PNB) per capita para 2020. A simulação sugere que as condições actuais corresponderiam a uma queda abrupta e sem precedentes no que se refere ao desenvolvimento humano. Com praticamente 9 em cada 10 alunos a não frequentar a escola e profundas recessões na maioria das economias (incluindo uma queda de 4% do PNB per capita no mundo inteiro), o declínio no Índice seria o equivalente a apagar todo o progresso em matéria de desenvolvimento humano nos últimos seis anos. É importante ter em perspectiva que se as condições de acesso às escolas fossem restauradas, as capacidades relacionadas com a educação seriam imediatamente reestabelecidas – enquanto a dimensão relativa ao rendimento seguiria o trajecto da recuperação económica pós-crise. As simulações também demonstram a importância de promover a equidade no acesso aos recursos. Num cenário com um acesso à internet mais equitativo – no qual cada país diminui o fosso com os líderes do desenvolvimento humano na sua categoria – o declínio do desenvolvimento humano seria travado em mais de metade. Isto é perfeitamente acessível. Em 2018, estimou-se que 100 mil milhões de dólares seria o montante necessário para equiparar o acesso à internet em países de baixo e rendimento médio – ou 1% dos programas fiscais extraordinários anunciados na totalidade dos países.

Esta não é a primeira vez que a humanidade enfrenta uma pandemia. A Peste Negra destruiu as estruturas económicas e sociais na Europa medieval. Para proteger o comércio e as viagens, cidades situadas no que é hoje a Itália foram pioneiras na instituição de quarentena e outras medidas de contenção durante a Renascença. Surtos globais de Cólera no início do Séc. XIX contribuíram para uma cooperação global sem precedentes em matérias de saúde pública e na realização de conferências internacionais sobre higiene e salubridade nesse período. Há cerca de 100 anos, movimentos massivos de pessoas pelo mundo, no pós Primeira Grande Guerra, contribuíram para espalhar o vírus Influenza que originou uma das mais letais pandemias de que há registo: a Gripe Espanhola. Há pouco mais de 10 anos, centenas de milhares de pessoas morreram durante a pandemia provocada pelo vírus H1N1. Surtos recentes de doenças zoonóticas (de outros animais para humanos), como a SARS e MERS, tiveram impacto brutal em várias partes do mundo, tal como outros surtos de doenças zoonóticas já conhecidas (Ébola). A SIDA provocou mais de 32 milhões de mortes desde o início da década de 1980. As ainda, em larga medida desconhecidas, características do vírus causador da COVID-19 (cuja origem é possivelmente de um animal não humano; cientistas têm vindo a assinalar há vários anos que a pressão humana no meio ambiente aumenta o risco e a frequência deste tipo de transmissões), a par com a globalização característica do nosso mundo foram determinantes na propagação do SARS-COV-2 em escassas semanas.

Contudo, esta pandemia não tem precedentes por ter evoluído de uma questão de saúde para uma crise económica e social. O distanciamento social e a suspensão de actividades não essenciais travaram a própria atividade humana. A Organização Internacional do Trabalho projetou que, no segundo quarto de 2020, as horas trabalhadas terão um decréscimo correspondente à actividade de 195 milhões de trabalhadores a tempo inteiro. Ao contrário de outras crises, o emprego está a ser atingido primordialmente de duas formas. Uma contração na procura do trabalho advém da reduzida actividade humana e do impacto da diminuição da riqueza na recessão global; e uma oferta de emprego a curto prazo advém da suspensão de serviços não essenciais em vários países. O corte na oferta de trabalho e o aumento do desemprego necessitam de políticas macroeconómicas adequadas. No entanto, os efeitos vão além do típico declínio na procura, que é normalmente resolvida através do estímulo ao consumo e à actividade económica em geral. Isto sucede porque as políticas de saúde pública que têm em vista conter e atrasar a disseminação da COVID-19 têm como premissa reduzir o contacto e a interacção humana e, em consequência disso, a actividade económica.

Sugerir que a resposta à pandemia representa uma oportunidade sem precedentes para reconstruir melhor tornou-se um mantra, mas saber quais as necessidades a considerar para garantir que tal se verifica afigura-se menos claro. A esse respeito, há três possibilidades a considerar.

Primeiro, lembramo-nos que a pandemia foi consequência de tensões entre pessoas e tecnologia, entre pessoas e o planeta, entre quem tem e quem não tem. Estas tensões já estavam a moldar uma nova geração de desigualdades. Contudo, a resposta a esta crise pode moldar a forma como essas tensões são resolvidas, bem como demonstrar em que medida as desigualdades no desenvolvimento humano podem ser reduzidas. Assim, investimentos em avanços e na redução de disparidades do desenvolvimento humano são cruciais para garantir uma recuperação atempada e para nos prepararmos para uma próxima crise. Numa perspetiva de desenvolvimento humano, preocupada em expandir as competências e capacidades das pessoas, proteger a saúde pública e padrões de vida sustentáveis são essenciais. Prosseguir e reduzir disparidades em competências básicas e avançadas – as novas necessidades do Séc. XXI, tal como definido no Relatório do Desenvolvimento Humano de 2019 – são a chave para atingir aqueles objetivos.

Um exemplo concreto relaciona-se com o acesso desigual às tecnologias, o qual tem tido um impacto considerável na capacidade das comunidades lidarem com a COVID-19. Desigualdades nos apoios e meios dos agregados familiares leva a uma experiência desigual na aprendizagem com recurso a meios online. A situação disruptiva causada pela COVID-19 na educação não tem precedentes. Escolas, a nível nacional, estiveram encerradas, em pelo menos 147 países, afectando mais de 1,4 mil milhões de crianças e jovens, ou seja, cerca de 86% da população estudantil mundial. Isto é desconcertante para o desenvolvimento de crianças que frequentam o ensino, com consequências a longo prazo para o seu potencial. A extensão no modo como o ensino formal é substituído pelo ensino em casa – através do envolvimento parental, autoiniciativa e recurso à internet – encontra-se dependente dos apoios e meios do agregado familiar. Tal como salientado no Relatório de Desenvolvimento Humano de 2019, o nível educacional dos pais molda a educação e a aprendizagem das crianças.

Em muitos países, os sistemas de ensino e universitário passaram a ser lecionados online. Tal como examinado no Relatório de Desenvolvimento Humano de 2019, o acesso à tecnologia é desigual, entre países. Enquanto se verifica uma convergência em tecnologias básicas, como no acesso a telemóveis, o fosso digital entre e dentro dos países acentuou-se no que respeita a outras tecnologias como o acesso a computadores, internet e banda-larga – tudo exemplos de capacidades avançadas. A interação entre a pandemia e a desigualdade em capacidades avançadas significa que muitos países não têm sequer a opção de fazer migrar o trabalho escolar, ou as aulas, para o online. Se este cenário se mantiver, os países que se encontram numa posição menos privilegiada também não terão acesso a essa possibilidade no futuro (divergência). Contudo, mesmo em países que tiveram os meios para fazer migrar o trabalho escolar e as aulas para o online, a experiência difere e os resultados acabam por ser mediados pela desigualdade. Em países com um Índice de Desenvolvimento Humano muito elevado verificam-se apenas 28.3 subscrições de banda larga por cada 100 habitantes. A banda larga pode ser dispendiosa fora dos centros urbanos e as diferenças no acesso e na disponibilidade de aparelhos pessoais para o efeito são imensas, especialmente se esses aparelhos tiverem de ser partilhados no seio do agregado familiar. O acesso a material informático dedicado exclusivamente para aquelas actividades, o acesso à banda larga e as contribuições dos pais são circunstâncias determinantes para aferir do forte impacto negativo da pandemia no desenvolvimento humano a longo prazo, particularmente em alguns países e em grupos no seio dos diferentes países. Ademais, para garantir um ensino inclusivo, é necessário criar condições para os estudantes com necessidades especiais, em especial para aqueles têm algum tipo de dificuldade no processo de aprendizagem.

“Há um enorme espaço no qual as políticas públicas podem intervir no sentido de expandir o acesso a tecnologias, sem deixar ninguém para trás. Após décadas de desigualdades crescentes nesta área, este é o momento para promover uma modernização igualitária.”

 

A importância da internet vai muito além da educação. No contexto da crise provocada pela COVID-19, vários aspectos fulcrais do desenvolvimento humano passaram a estar dependentes de recursos online e de aplicações: a possibilidade de trabalhar, comprar, manter-se saudável, denunciar violência doméstica, interagir socialmente e estar próximo daqueles que amamos. A nova geração de soluções desenhadas para contornar os efeitos da crise intensificarão, possivelmente, a dependência nessas tecnologias e no seu desenvolvimento. Os objectivos do desenvolvimento estão a alterar-se. Grupos desfavorecidos, sem possibilidade de aceder à internet têm uma maior probabilidade de serem esquecidos. Entre eles, idosos – grupo que concentra maior número de mortes em consequência da COVID-19 – que têm de enfrentar o desafio que advém de longos períodos de mobilidade condicionada e que, além disso, estão particularmente limitados no acesso às novas tecnologias que permitem fazer compras, pagar contas ou receber apoios estatais. Há um enorme espaço no qual as políticas públicas podem intervir no sentido de expandir o acesso a tecnologias, sem deixar ninguém para trás. Após décadas de desigualdades crescentes nesta área, este é o momento para promover uma modernização igualitária.

Em segundo lugar, a importância de se adoptar uma perspectiva equitativa também tem sido confirmada pelas análises históricas. À medida que uma crise se desenrola, uma abordagem activa que identifique os seus efeitos e mecanismos de transmissão pode moldar uma resposta duradoura e equitativa. É essencial distinguir entre os impactos a curto prazo da pandemia daqueles que se farão sentir a longo prazo – e impactos significativos, no geral. Partindo de uma vasta e profunda análise histórica, Walter Scheidel demonstrou que grandes choques como guerras e pandemias podem reduzir a desigualdade no rendimento sendo que, no entanto, esse resultado dependerá das respostas políticas. Quando as pandemias têm associada uma mortalidade alta, o retorno para o factor trabalho aumenta quando comparado com o retorno do factor capital uma vez que os trabalhadores exigem melhores remunerações – em parte porque há uma menor oferta de mão-de-obra, devido à mortalidade e também porque os trabalhadores têm receio de contrair a doença e, como tal, exigem melhores condições para continuar a deslocar-se para o trabalho. No rescaldo da Peste Negra, em certas partes da Europa, durante a Idade Média, nos locais onde as respostas políticas respeitaram estas exigências, as desigualdades de rendimento e riqueza caíram abruptamente. Onde se verificou uma política de repressão, como em certas partes do leste europeu, despoletou-se o aparecimento de estruturas sociais baseadas na servidão que duraram durante séculos, levando a persistentes e generalizadas desigualdades no acesso à riqueza.

Análises recentes confirmam que os salários reais muitas vezes aumentam durante bastante tempo a seguir a uma pandemia. Contudo, as taxas de juros efectivas também sofrem um decréscimo e permanecem baixas durante um considerável período (em parte porque, ao contrário do que sucede em situação de guerra, não há destruição do capital físico) o que diminui a propensão para acumular riqueza e facilita a despesa pública. Desconhecemos se este padrão histórico ocorrerá, a longo prazo, após a pandemia provocada pela COVID-19: em parte porque a esperança de vida agora é bastante superior e a mortalidade poderá ser inferior à ocorrida em pandemias anteriores. Seja como for, as taxas de juro já se encontram particularmente baixas nos países desenvolvidos. Além da desigualdade no rendimento e no acesso à riqueza, as implicações das desigualdades para o desenvolvimento humano são ainda menos claras. Contudo, o potencial para reorganizar sistemas sociais e políticos após grandes choques deve ser algo a ter em conta e a oportunidade para nos tornarmos numa sociedade mais equitativa deve ser agarrada.

“Enquanto o consenso actual já abrange a necessidade de combinar objectivos sociais, económicos e ambientais numa agenda inclusiva e global, a humanidade não está a percorrer um trilho que vá nesse sentido.”

 

Em terceiro lugar, e finalmente, um dos aspetos mais gritante que resulta da resposta à crise é o lembrete relativo à importância da acção colectiva – acções que tomamos pensando não apenas em nós, mas em prol de todos. É óbvio que todos permanecemos vulneráveis até à disseminação do vírus ser travada em todo o mundo – até que surja uma vacina, ou seja implementado um tratamento. Evidências recentes de um país sugerem que um dos melhores prognósticos para aferir do sucesso das medidas de distanciamento social são as atitudes em relação às alterações climáticas.

Ainda assim, a vários níveis, as pessoas em todo o mundo responderam colectivamente. A adopção de comportamentos de distanciamento social – que em alguns casos teve início antes de políticas nessa área terem sido adoptadas formalmente – não poderia, provavelmente, ter sido aplicada e acabou por depender da cooperação voluntária de milhares de milhões de pessoas. A taxa de cumprimento de medidas-chave para o distanciamento social, baseado num recente e extremamente alargado inquérito baseado em mais de 100.000 respostas em 58 países entre março e abril de 2020, foi de pelo menos 90% da população. E isto foi feito em resposta a um risco global assumido como prioridade e em detrimento de um crescimento mais rápido da economia. Se precisávamos de provas evidentes de que a humanidade consegue responder colectivamente a um desafio global, esta situação muito possivelmente demonstrou-o.

A aprendizagem com esta crise, somada à evolução de valores e prioridades, afectará as nossas perspectivas sobre a forma como o desenvolvimento humano se molda à medida que avançamos para os meados do Séc. XXI e ao que estamos dispostos a fazer para lá chegar. Enquanto o consenso actual já abrange a necessidade de combinar objectivos sociais, económicos e ambientais numa agenda inclusiva e global, a humanidade não está a percorrer um trilho que vá nesse sentido. O mundo está aquém no que concerne à luta contra as alterações climáticas, ao mesmo tempo a que se assiste à ascensão de uma nova geração de desigualdades em matéria de desenvolvimento humano, e com a previsão de ainda ter 400 milhões de pessoas a viver em pobreza extrema em 2030.

A reflexão sobre a presente pandemia, as suas implicações e a perspectiva de construirmos sobre alguns dos ganhos alcançados podem ser lições válidas para a adopção de acções mais vigorosas. Por exemplo, a economia e a sociedade digital foram as únicas realidades que mantiveram a economia e que permitiram a interacção social para milhares de milhões de pessoas. O aprofundamento no uso da teleducação ou da telemedicina podem contribuir para expandir o acesso a estes serviços, se houver investimento na redução das desigualdades e no reforço de competências. Outro exemplo é a redução acentuada da actividade económica que também se reflectiu em menos poluição e muito provavelmente nas emissões de gases com efeito estufa (atendendo à queda abrupta na procura de combustíveis fósseis). À medida que a actividade económica recupera, as sociedades terão de confrontar-se com a escolha de manter velhas abordagens ou reforçar a aposta no investimento de novas abordagens, mais amigas do ambiente. Há um amplo consenso público no que respeita ao apoio de medidas mais vigorosas no rescaldo da pandemia provocada pela COVID-19, com 2/3 dos adultos em 14 países a apoiar a prioritização das questões relacionadas com as alterações climáticas durante o período de recuperação – e 71% consideram que as alterações climáticas constituem uma crise tão grave quanto a pandemia provocada pela COVID-19.

Mais do que tudo, esta crise é um duro lembrete sobre a improbabilidade de a humanidade se manter saudável num planeta adoecido. Ignoramos a nossa disrupção da natureza por nossa conta e risco. Contudo, a crise demonstrou o potencial da humanidade quando age colectivamente para dar resposta a um desafio global que é partilhado por todos. Sim, a resposta pode ter sido irregular, fragmentada e incoerente mas, virtualmente em todos os lugares, milhares de milhões de pessoas modificaram o seu comportamento para enfrentar uma ameaça comum. Isto tornou perfeitamente claro que dar resposta a outros desafios globais – desde as alterações climáticas e a extinção de espécies até às crescentes desigualdades em matéria de competências avançadas – está ao nosso alcance.

 

Este artigo tem por base o Relatório de desenvolvimento Humano de 2019 (http://www.hdr.undp.org/en/ 2019-report) e o Relatório “COVID-19 e Desenvolvimento Humano: avaliar a crise, perspetivar a recuperação” (http://hdr.undp.org/en/hdp-covid).