Comunicação e jornalismo para a mudança social: que desafios?

Carla Cerqueira

É doutorada em Ciências da Comunicação – especialidade de Psicologia da Comunicação pela Universidade do Minho. Actualmente é investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) e Professora
Auxiliar na Universidade Lusófona do Porto. Os seus interesses de investigação incluem género, feminismos, diversidade, media e comunicação de ONGs.

Sónia Lamy

É doutorada em Ciências da Comunicação pela FCSH / Universidade
Nova de Lisboa. Actualmente é directora do Mestrado de Media e Sociedade, do IPPortalegre. Tem lecionado unidades curriculares na área do jornalismo e discurso dos media no primeiro e segundo ciclo de estudos. Tem estudado sobretudo o discurso jornalístico, as fontes de informação e as dinâmicas das ONG nos media.

“Explicar o que se entende por comunicação para a mudança social e desenvolvimento implica olhar para a comunicação enquanto processo social, o qual depende sempre do contexto e do prisma epistemológico.”

 

Introdução

Desde meados da década de 1990 que tem crescido a atenção sobre a comunicação para o desenvolvimento, bem como a consciência de que a comunicação desempenha um papel fundamental no contexto da mudança social.

A comunicação não é um fenómeno externo ou independente da cultura da entidade ou organização e naturalmente que está relacionada e intrinsecamente associada a esta. Paralelamente ao seu papel no contexto da organização, quando falamos em comunicação para a mudança social devemos encontrar o equilíbrio que nos leva para um ou outro lugar. De facto, ao pensarmos a comunicação para a mudança social pensamos nos fenómenos, crenças e valores que motivam e mobilizam a ação de uma instituição ou entidade.

Além de pretendermos refletir sobre o papel da comunicação no contexto da mudança social, neste texto visamos ainda observar a forma como os meios de comunicação, nomeadamente os média noticiosos, produzem efeitos na sociedade. Partindo da máxima de que o jornalismo está envolvido na (re)construção do espaço público, propomos aqui a observação da perspetiva da teoria do agendamento, e forma como de certo modo o jornalismo pode contribuir para a mudança social a partir da construção de uma agenda que potencie isto mesmo.

A comunicação para a mudança social

Explicar o que se entende por comunicação para a mudança social e desenvolvimento implica olhar para a comunicação enquanto processo social, o qual depende sempre do contexto e do prisma epistemológico que estão a ser utilizados. De acordo com Chaves (2012), a comunicação para a mudança social pode ser entendida como alternativa, participativa, que empodera e vai permitir criar espaços de expressão.

Na mesma aceção Peruzzo (2015: 192-193) explica que “não se trata de pensar a comunicação apenas como os meios ou instrumentos eficazes como canais difusores de mensagens, mas imbricada em atividades com vista ao desenvolvimento integral e participativo. Trata-se de pensar a comunicação como parte de um processo organizativo/ mobilizador de caráter comunitário, que se volte para a produção de conhecimento e de sistemas de informação segundo as necessidades e interesses dos grupos envolvidos nas lutas para ampliação da cidadania”. Já se recorrermos a Servaes (2008) este refere a necessidade de um diálogo comunicativo contínuo entre quem propõe a comunicação e quem beneficia dela. Entende por isso que a comunicação mediática é importante, mas a comunicação dentro do grupo (comunicação interpessoal) é crucial.

Uma coisa parece emergir e tornar-se evidente. O papel fundamental dos média e da comunicação no processo de mudança social. Como aponta Tufte (2017), é cada vez maior o impacto do reconhecimento de que a comunicação é parte dos processos de transformação, esse reconhecimento crescente pode não estar propriamente ligado a um campo específico de comunicação para a mudança, mas num processo que inclui e tem na base as comunidades. Sobre isto, este autor defende mesmo que “há uma voz que tem ganho lugar nos processos de mudança social e política, resultado de uma articulação cada vez maior de táticas por parte dos cidadãos, os cidadãos que se estão tornando requerentes de desenvolvimento” (Tufte, 2010:86). E apesar do autor sugerir que o agente da mudança não reside mais no jornal ou no jornalista, mas no cidadão comum, este cidadão não deixa de estar envolto num contexto onde a informação é base para uma parte de construção daquela que é a realidade que este tem na sua base de formação. Se os novos média têm um forte impacto na reprodução de informação que “alimenta” os movimentos sociais e as transformações sociais (Tufte, 2017), parece-nos determinante referir aqui a relevância destes mesmos novos média para a polarização de informação criada de forma regular num contexto jornalístico, pelo que nos parece aqui também crucial observar a forma como nos parece que o jornalismo tem vindo a contribuir para a comunicação da mudança.

​O papel do Jornalismo na comunicação da mudança

O jornalista, enquanto produtor das notícias, “é responsável por uma missão pública de informação, que constitui o seu estatuto normativo, e está enquadrado a dois níveis. Ao nível da empresa noticiosa, que assegura a publicação ou a difusão da sua obra jornalística, e cujo carácter específico, peso e aspirações variáveis condicionam a sua atividade” (Cornu,1994: 255). É incontornável que a linha redatorial dos média determina fortemente o modo como estes se posicionam, assim como os hábitos e tradições que criam. Como refere Cornu (1994), muitos fatores influenciam o produto final, as relações com as principais fontes de informação, a atenção prestada ao público, os círculos de influência, no fundo, todas as interferências que se tornam parte das notícias produzidas.

Parece-nos relevante entender o jornalismo como elemento fundamental neste processo, e partindo da premissa de que os meios de comunicação têm capacidade de produzir efeitos na sociedade. Aliás, este tem sido um dos temas mais debatidos no contexto da teoria do jornalismo.

​O impacto do agendamento na mudança social

Um dos objetivos aqui determinado é entender alguns dos conceitos que consideramos estar na base do trabalho jornalístico e da forma como este aparece no contexto público. A sociologia do jornalismo tem, aliás, procurado explicar estes mesmo efeitos tentando entender o espaço e relevância do jornalismo enquanto fenómeno determinante no contexto da mudança social. A capacidade, ou incapacidade, de produzir efeitos na sociedade, bem como as relações de poder envolvidas no embate pelo controle do campo jornalístico, têm colocado o jornalismo no centro da discussão sobre o seu papel no processo de mudanças sociais.

​Naturalmente que a importância do jornalismo se avalia pelo impacto que este pode ter socialmente. Não é possível pensar o jornalismo sem observar também o modo como este chega até ao público e como se repercute. “O jornalismo constitui uma parte da vida política que a própria ciência política tende a negligenciar” (Schudson, 2002: 249). Aliás, alguns estudantes de política têm mesmo vindo a deslocar o seu estudo para a área das notícias por se tornar evidente a importância destas no contexto da formação política. Os média têm um forte impacto e força na própria vida política, independentemente da ação projetada pelos partidos políticos. Contudo, o estudo dos média tem permitido a observação das rotinas e consciência, em todas as entidades, da força e poder deste fator na vida política. Como refere Schudson (2002), para tentar justificar a importância atribuída ao estudo dos média, “as empresas jornalísticas têm estado intimamente ligadas à política”.

Muitos autores dedicam-se precisamente ao estudo do jornalismo pela importância da notícia no contexto social. As implicações da informação parecem revelar-se nas tendências ideológicas e sociais.

As notícias são produto de uma série de ações e rotinas, nas quais a pressão das fontes, nomeadamente das mais poderosas, parece tomar espaço e relevância. A notícia não espelha a realidade, mas também não reproduz somente a ordem social dominante, podendo mesmo funcionar como um mecanismo de resistência social. A profissionalização dos jornalistas e a luta de diferentes agentes sociais na definição dos sentidos sociais dos acontecimentos que promovem dão-nos uma perceção da complexidade, ao qual os jornalistas não estão alheios. Nesta ótica, cada vez mais, os jornalistas têm consciência de toda a máquina que motiva e mobiliza muitos agentes comunicadores, contudo nem sempre conseguem combater esta tendência.

“A notícia não espelha a realidade, mas também não reproduz somente a ordem social dominante, podendo mesmo funcionar como um mecanismo de resistência social”

Os públicos usam esta relevância dos média para organizar a sua própria agenda e decidir quais os assuntos que são mais importantes. Ao longo do tempo, os tópicos enfatizados nas notícias tornam-se os assuntos considerados mais importantes pelo público, enquanto outros parecem ficar silenciados. A agenda dos média torna-se também a agenda do público. Noutras palavras, e como refere Maxwell McCombs (2009), os veículos jornalísticos estabelecem a agenda pública. Há uma relação com o público, colocando um assunto ou tópico na agenda pública de forma a que ele se torne o centro da atenção e do pensamento público, é o estágio inicial na formação da opinião pública. No fundo, há uma transferência da agenda dos média, e do padrão da cobertura noticiosa, para a agenda do público, e para aquelas que são as preocupações do público. Os assuntos mais destacados tornam-se os mais importantes, os outros ficam “escondidos” numa espécie de silenciamento permanente.

A teoria da agenda atribui um papel central aos veículos noticiosos por serem capazes de definir itens para a agenda pública. O poder da imprensa estabelece a agenda de discussão pública, e este poder político não é limitado por qualquer lei. Este pode ser entendido como central na definição do que está no centro das preocupações sociais.

​É neste sentido que desde o início de 1990 desencadeiam-se fluxos sem precedentes, não só de comércio e capitais, mas também de informações, dados e ideias. Parte importante da sociedade civil organizada, ONG, ativistas e movimentos sociais movimentam-se também no contexto público e conduzem alguns “debates” no contexto mediático.

Construção de uma agenda para a mudança social

Se, por um lado, temos um panorama jornalístico com cada vez menos “espaço para a reportagem de desenvolvimento, e para o jornalismo investigativo” (Saeed, 2009:468), a verdade é que é no contexto jornalístico que muitos dos temas de debate surgem.

Ligada às mais variadas e possíveis esferas da vida humana, a atividade jornalística tem, desde a década de 1980, apresentado contornos que lhe atribuem um compromisso direto com a promoção da cidadania e com o desenvolvimento (Cascais, 2001, p. 120). Desde as últimas décadas do século XX e até à atualidade que os média se tornam um palco de discussão, mas em alguns contextos também de formação para a cidadania. O jornalismo não é, na maior parte das vezes, só uma profissão, mas vai muitas vezes mais além, motivando o debate de ideias no contexto do espaço público. Independentemente do ponto de vista, isso tudo coincide com o que Kovach e Rosenstiel (2004: 31) chamam de “principal finalidade do jornalismo”: “fornecer aos cidadãos as informações de que necessitam para serem livres e se autogovernar”. Os autores argumentam que o jornalismo se reflete e interfere nas condutas, na maneira como as pessoas se comportam e até mesmo nas possibilidades – ou, melhor dizendo, nas chances – de participação na esfera pública.

É na procura por novidades que os cidadãos encontram no jornalismo um espaço onde satisfazem esta busca. A imprensa e os meios digitais projetam as discussões da sociedade, valorizando alguns aspectos, em detrimento de outros, como nos sugere McCombs, com a teoria do agendamento. Por isto mesmo acreditamos que no jornalismo também encontramos este espaço de promoção das transformações e do desenvolvimento.

Há raízes comuns no desenvolvimento dos movimentos sociais de acordo com Giddens (1991:131). Durante toda a fase de desenvolvimento primitivo das instituições modernas, os movimentos operários tenderam a ser os principais portadores dos apelos e exigências de valores, como a liberdade de expressão e os direitos democráticos. Contudo, estes podem ser separados dos movimentos democráticos e, pela liberdade de expressão, “têm a sua origem na arena das operações de vigilância do Estado moderno” (1991:132). Jeff Atkinson e Martin Scurrah (2013), numa obra sobre o papel das organizações na mudança social à escala global, distinguem três tipos de estruturas sociais cuja génese é semelhante. Por um lado, os autores destacam as “organizações da sociedade civil” que têm por base a reunião de cidadãos comuns, em prol de um interesse ou preocupação comum e sobre o qual se sentem particularmente sensibilizados. As características independentes e que excluem organizações governamentais e económicas aproximam estas entidades das que conhecemos por determinadas como ONG. Estas últimas, já formalmente organizadas e constituídas, são habitualmente privadas, autogovernadas, não têm fins lucrativos e a sua agenda está particularmente dirigida para as questões de justiça social – pobreza, promoção dos direitos humanos e proteção ambiental.

Lewis e Kanji (2009) referem que este conceito de sociedade civil é habitualmente usado para um “espaço” que não faz parte nem do estado nem do mercado, grupo do qual fazem parte as ONG. Estes autores defendem que o conceito de sociedade civil só por si não existe. É a partir dos anos 1980 que a ideia de sociedade civil começa a ser invocada enquanto parte de um debate democrático mais desenvolvido, e de uma maior participação pública. “A ideia de sociedade civil está fortemente relacionada com as raízes do conceito de ONG” (Lewis e Kanj, 2009: 123).

Os meios da sociedade civil e movimentos associativos dependem dos recursos existentes, da experiência alcançada e da capacidade de resposta das organizações às necessidades detetadas por esta mesma entidade. Assim, o discurso da sociedade civil é duplamente um meio e o resultado das suas práticas. (Hilhorst, 2003).

Surgem organizações cujo papel que desempenham não é o de atores principais mas, tão somente, o de “agentes catalisadores” ou “facilitadores”, que cooperam com as comunidades locais no reforço do tecido associativo, no incentivo à participação, ou na ajuda aos sectores mais vulneráveis da população. Elementos fundamentais para a sustentabilidade dos processos de desenvolvimento (ONGD, 2005).

Um factor de fundamental importância na relação das associações com o meio e com a comunidade internacional é a comunicação com a sociedade civil. Ponte esta feita em grande medida pelos média, não só pelos novos média, mas também pelos meios tradicionais. A participação da sociedade civil organizada no espaço público parece apontar (Lamy, 2015) para uma presença nos média alinhada com a atualidade noticiosa, em que temas como pobreza e exclusão social, violações de direitos humanos e ambiente motivam muitas vezes um contacto com os média e uma aproximação entre as notícias e a sociedade civil. Lamy (2016) identifica um vasto número de organizações, associações, mas também movimentos associativos no contexto noticioso, com dinâmicas de atuação muito diversas, tanto de origem nacional como internacional. Os jornalistas e as agendas mediáticas parecem ser muito influenciados, nas suas rotinas diárias, pela capacidade de resposta que se depreende ter um movimento associativo perante um acontecimento.

Notas finais

Num período marcado por profundas mudanças no jornalismo, nas organizações e movimentos da sociedade civil, nas plataformas de distribuição de conteúdos e na próxima sociedade é fundamental não ignorar o papel da comunicação e do jornalismo enquanto espaço para o debate de questões coletivas que incluem as várias preocupações existentes na sociedade e que permitem fomentar a participação cidadã e a transformação social.

​Se nos parece fundamental perspetivar a relevância da comunicação para a construção destas mesmas transformações, é importante considerar o papel do jornalismo na formação do espaço público, já que este pode ser determinante na forma como a cidadania se constrói, e então como se articulam e acontecem os processos de transformação social.

Muitas são as interrogações que se levantam neste campo da comunicação e do jornalismo para a mudança social e desenvolvimento. Que comunicação se ensina nas universidades? Como é que as organizações e movimentos sociais definem as suas estratégias de comunicação? Que voz é que o jornalismo dá a estes temas e organizações no quotidiano? Que impacto é que a mediatização tem para as organizações que lutam pela mudança social e para as comunidades com as quais trabalham?

Pensar a comunicação para a mudança social e desenvolvimento implica, por isso, diversos desafios. Num campo atravessado por uma grande diversidade de perspetivas, um dos principais passa pela partilha de conhecimentos, dúvidas e experiências entre os vários atores sociais envolvidos neste campo, de onde se podem destacar as organizações e profissionais da esfera mediática, as organizações da sociedade civil e profissionais da área da comunicação e as instituições de ensino superior. Só deste diálogo articulado é possível a compreensão das diversas realidades e das suas necessidades específicas.

Referências

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Cascais, F. (2001). Dicionário de jornalismo: as palavras dos media. Lisboa: Verbo.

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Hilhorst, D. (2003). The Real World of NGOs: Discourses, diversity and Development. Nova Iorque: Zed Books.

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Lewis, D., & Kanji, N. (2009). Non-Governmental Organizations and Development. New York: Routledge.

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